Não é sobre sexo, é sobre poder: contra a fetichização de mulheres no underground.

foto minas

Era uma vez um gringo aleatório dos confins da Europa Oriental que resolveu adicionar no Facebook todas as mulheres brasileiras que tocam em bandas de punk/metal. Com muito otimismo, poderíamos pensar que o sujeito apenas curte o som das minas, quer comprar umas camisetas e uns discos, apoia a participação feminina no underground e toda aquela premissa esperançosa. Mas logo o inocente contato se transforma em mensagens invasivas, comentários desnecessários, interações forçadas e piadinhas inconvenientes, até o ponto de salvar fotos das minas sem autorização e a inacreditável audácia de imprimir as imagens e colocar na prateleira.

Parece a descrição de algum maníaco pervertido, mas os relatos são verídicos e trata-se apenas de um exemplo extremamente caricato de um fenômeno mais que trivial: a fetichização das mulheres no underground. O caso, exposto pela nossa amiga Nata de Lima da banda Manger Cadavre? no Facebook, gerou uma onda de comentários descrevendo experiências recentes de mulheres com o mesmo cara, e ainda outras histórias de assédio, perseguição e desrespeito. Teve caso de desconhecido de banda gringa que postou foto de mulheres brasileiras chamando de groupies, relatos de homens que adicionam compulsivamente qualquer mulher relacionada ao underground e enviam mensagens impróprias, e todo tipo de objetificação e importunação que as minas são obrigadas a enfrentar nesse cenário.

O fato de ser um gringo atrás de latinas alternativas é só uma exacerbação do problema, o clichê dos clichês, mas o buraco é muito mais embaixo. Ser mulher e tocar, berrar, escrever, desenhar, organizar e participar de rolês dentro da produção contracultural que se convenciona chamar de “underground”, orbitando entre as vertentes do punk/metal, continua sendo uma saga contra a subestimação masculina. E, como o macho underground é a cópia descolada do macho mainstream, a maneira favorita de atacar as minas é sempre mirando na sexualidade.

Receitinha clássica do patriarcado milenar: na falta de argumentos, desumanize a mulher pela sexualidade, corpo e aparência. Ou é gostosa e por isso não faz nada que presta, ou faz algo que presta mas é feia, ou é gostosa e faz algo que presta, mas se eu não posso comer, eu odeio.

São muitas variáveis, mas a fetichização é o elemento sempre presente. Por fetichização se entende a objetificação não consensual, estigmatização e redução de toda a complexidade de um ser humano do sexo feminino à sua aparência e apelo sexual. Na linguagem popular, é tratar como pedaço de carne, urubu na carniça, zé punhetagem, e todas essas condutas já bem conhecidas.

“Mas esse discurso é puritano”. Vou te falar, difícil encontrar um meio com mais pudor e censura que esse tal de underground, onde as pessoas lidam terrivelmente mal com a sua própria sexualidade e os caras parecem nunca ter discutido a questão com seriedade – acho que em todos aqueles debates sobre consenso e liberdade eles só colaram à procura de uma foda com minas supostamente “libertinas”, mas nunca prestaram atenção em nada.

A fetichização que perturba as mulheres no underground é a maior expressão do conservadorismo, é a espetacularização dos nossos corpos digna da indústria cultural mais reacionária e escrachada, sem a menor coerência com qualquer posicionamento contra-hegemônico (que, supõe-se, está presente em 90% dos discursos envolvidos na contracultura).

A fetichização não é sobre atração, flerte ou desejo, é sobre reificação. É sobre coisificar mulheres, limitar sua representatividade a um único aspecto, desrespeitar sua autonomia e secundarizar tudo o que elas produzem em função do olhar masculino. Como se tudo nesse meio fosse produzido de e para homens, como se fôssemos eternas coadjuvantes, sempre passando pelo crivo masculino, que tem como critério máximo a aparência física, o nível de “fuckability” atribuído. Você pode dar tudo de si nos seus projetos, acreditar na produção independente, fazer um corre animal com sua banda, rolê, zine, oficina… no fim, a frustração de ser tratada em função do quanto você agrada (ou não) esteticamente um macho é uma triste realidade.

Quando chega esse momento da crítica, sempre tem um cara pra questionar se ele por acaso “não pode achar as minas bonitas”. É como a velha discussão da diferença entre xaveco e assédio, que parece absurdamente óbvia mas ainda gera muita polêmica. Caso ainda restem dúvidas, fetichização não tem nada a ver com expressar fantasias com um parceiro sexual em uma relação mútua, o termo aqui é utilizado para definir o ato de fetichizar indiscriminadamente, ou seja, atribuir sentido erótico a uma pessoa ou características específicas em função do próprio interesse sexual – normalmente inferiorizando e alienando a mulher da sua condição de sujeito. O ato em si não é um problema, aliás, é perfeitamente saudável, quando realizado consensualmente ou mesmo quando permanece no âmbito particular.

O problema da fetichização de mulheres enquanto fenômeno generalizado é o que isso significa em uma sociedade profundamente machista. Sejamos francos, não se trata de um ato de admiração em um mundo em que os homens ainda classificam mulheres como “vadias”, em que reina a hipocrisia da obsessão por mulheres nuas e ao mesmo tempo a completa desumanização daquelas que exercem sua sexualidade livremente. Toda mulher sabe o peso de ser julgada pela sua aparência em primeiro lugar, por esse papel feminino de sustentar o mito da beleza em nome da aprovação dos homens, um dos alicerces da desigualdade de gênero.

É óbvio que é absolutamente normal e positivo achar as pessoas bonitas, sentir atração, flertar, xavecar, demonstrar tesão e tudo mais. Mas essa relação exige troca e a participação de duas pessoas, como é esperado nas interações humanas. Não é muito difícil entender que nós não queremos reprimir sexualidade e libido de ninguém, apenas desejamos um mundo em que achar uma mulher atraente não signifique jogar fora todo o resto que existe sobre ela, muito menos diminuir ou ignorar tudo o que ela faz em função disso.

Quem expõe essa questão com propriedade é Katherine Katz, vocalista brutal da lendária banda de grindcore Agoraphobic Nosebleed“Se você para pra pensar sobre, as mulheres não podem expressar sua sexualidade sem sofrer constrangimento porque são valoradas primeiramente como objetos sexuais pela nossa cultura; nossa sociedade diz que a sexualidade feminina pertence aos homens. Homens podem ser sexy e respeitáveis ao mesmo tempo; mulheres não. Eu odeio ter que me policiar para me vestir toda vez que vou fazer um show – eu sei que se me vestir “sexy” demais, vou ser desrespeitada como uma mina que só quer aparecer.” Matéria completa aqui.

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Os homens são admirados, elogiados e viram assunto de conversa sem qualquer dano à sua humanidade, sem desconsiderar todo o corre deles só porque são desejáveis. Deixar de fetichizar é basicamente isso, ter relações mais saudáveis, tratar mulheres de igual pra igual e enxergar além de corpos inertes e consumíveis – é tudo muito mais prazeroso dessa forma, garantimos. E não pode ser tão difícil assim simplesmente trocar ideia numa boa e respeitar a pessoa que você achou interessante.

Não é surpreendente que qualquer mulher com mínima noção sobre feminismo não goste de ter sua existência resumida à estética. Dificilmente um cara entenderia o que é trampar feito louco na produção de um disco e encontrar uma resenha que só diz “parabéns e vocês são muito bonitos”, “gatos”, “o guitarrista é uma delícia”, ou ainda “achei uma merda mas ele é gostoso”. Soa completamente ridículo, agora basta se colocar por um momento no lugar de uma mina, que escuta essas bostas a vida inteira, de parentes, companheiros, amigos, conhecidos e inclusive de milhares de estranhos nas ruas que se acham no direito de nos assediar a todo momento. No underground, não faltam casos de assédio, abuso e violência, a diferença é que o caráter contracultural e revolucionário exige uma discussão muito mais profunda e uma postura combativa contra o machismo.

Dessa forma, é urgente questionar a naturalidade da fetichização nesse meio, que leva homens a criarem estigmas sobre as mulheres que, de alguma forma, desviam do status quo. Exotificação é o fenômeno que complementa esse quadro, que significa basicamente tratar mulheres “alternativas” como uma mercadoria exótica, um corpo excêntrico exposto para consumo de nichos segmentados – rebelde apenas na estética, porque a passividade continua sendo desejável. Muitas vezes, essa mesma estética que é motivo de fetiche por parte dos caras é nossa maneira de fugir das próprias imposições de feminilidade, de criar nossa expressão particular e reforçar a autonomia sobre nossos corpos. Mas autonomia certamente não interessa aos homens que menosprezam tudo o que as minas fazem e só enxergam um receptáculo, oco de personalidade, ideias e ações.

A exotificação também diz respeito à suposta “raridade” das mulheres que se interessam pela contracultura. Há milhares de razões para se tratar de um meio predominantemente masculino, assim como a própria Ciência e tantos outros campos ainda trazem as marcas da dominação masculina histórica. Boa parte da estética do underground é construída ao redor da masculinidade, seja através da noção de “agressividade” e caráter “extremo” do som, da ideia de brotherhood ou irmandade masculina até o estímulo cultural e acesso a instrumentos e equipamentos que não são comuns à vivência das mulheres. Da mesma forma que em outros campos, a participação equivalente das mulheres no underground é uma conquista a longo prazo de um espaço que lhes foi negado.

Os avanços são muitos e incontestáveis nos últimos anos, com muito mais mulheres produzindo, tocando, organizando e assumindo protagonismo em várias atividades contraculturais. Esse fluxo acompanha as transformações do nosso tempo em escala mundial, pois apesar das ameaças constantes de retrocesso, as mulheres deram passos importantes na direção da igualdade de gênero. Da mesma forma que os assédios nunca foram tão combatidos, as condutas machistas deixaram de ser toleradas e cada vez mais se torna inaceitável a inferiorização de mulheres, principalmente no meio que reivindica posturas libertárias.

O underground é – ou deveria ser – um espaço de contestação, onde as minas precisam encontrar seu refúgio da mesma forma que os caras, seu espaço de descontrução e reconstrução de si, de criação independente, de recusa aos padrões do hiperconsumo, de respiro diante de uma sociedade que marginaliza qualquer iniciativa autônoma e contracultural. Fetichização e exotificação de mulheres são posturas nocivas que simplesmente não cabem nessa realidade, e que só reforçam a desigualdade de gênero que contamina nossas relações. A recusa dos homens em respeitar nossa identidade, nossa liberdade e nosso trampo ainda representa um obstáculo no caminho de toda mina que só quer fazer seu corre e ser tratada como gente – como alguém a ser ouvida e não algo a ser visto.

Por Cely Couto para União de Mulheres do Underground

 

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